quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Modigliani

Flaminio passava pelo porto de Livorno, cabisbaixo, preso aos próprios pensamentos. Às portas da ruína, tentava encontrar uma maneira de escapar das dívidas que havia acumulado nos últimos tempos. Estava tão fechado em seu próprio mundo que somente quando sacudiram a manga de seu terno surrado, percebeu que um jovem mensageiro vinha lhe trazer notícias sobre sua amada esposa, Eugenie.
- Signore Modligiani, signore Modligiani, andiamo, andiamo veloce. Sua esposa está em trabalho de parto, signore.
Flaminio correu o mais rápido que pôde e chegou em casa juntamente com os credores. Eles estavam ali para levar os parcos bens da família de modo a quitar seus débitos. Mas a lei era clara: credor nenhum poderia tomar a cama – e o que estivesse em cima dela – de uma mulher grávida ou carregando um recém-nascido.
Aproveitando-se desta brecha na lei, o casal Modigliani conseguiu salvar os pertences mais valiosos, colocando-os sobre a cama da pobre mulher que acabara de dar à luz seu quarto filho, Amadeo. 
O menino de saúde frágil – ainda jovem contraiu pleurisia, febre tifoide e tuberculose – era o xodó da mãe e ela não poupou esforços para dar a ele a melhor educação possível. Mas na escola, Amadeo só queria saber de desenhar e fugir das aulas, fugir das aulas e desenhar.
“Será que meu filho é um artista?”, pensava Eugenie. O que, no início, era apenas uma suspeita, foi tomando forma na vida de mãe e filho. Ele, cada vez mais inclinado para as artes e ela, sem medir esforços, lutando para dar ao jovem a base necessária para que se tornasse um grande pintor, o que incluiu confiar-lhe às mãos de um representante dos Macchiaioli, um grupo de artistas florentinos que defendiam a pintura realista e, anos mais tarde, matricular Amadeo na prestigiada Escola de Belas Artes de Florença.
Dali, não demorou muito para que o rapaz se mudasse para Paris. Ah, Paris! Montmartre. O bairro da boemia e dos grandes artistas.
Logo que chegou, Amadeo instalou-se em uma água-furtada na Rue Caulaincourt. O número 21 daquela rua já havia abrigado o ateliê de Toulouse-Lautrec e, algumas casas mais adiante, mais precisamente no número 73, Auguste Renoir se instalaria e ficaria até seus últimos dias de vida.
Uma vez acomodado, Amadeo, com uma exuberante cabeleira negra e barba cortada rente, desfilava pelas ruas vestindo um velho paletó de veludo cotelê. Não foram poucas as vezes em que esbarrou em outros artistas, franceses ou estrangeiros como ele, todos em busca da fama que parecia brotar daquele chão para facilmente ser agarrada. Max Jacob, Jean Cocteau, Juan Gris, Kandinsky, o escultor Constantino Brancusi e Pablo Picasso, este, já alguns degraus acima em direção ao reconhecimento.
Naquela época, Amadeo, ou Modi, como era conhecido, esperava ansiosamente pelo dinheiro enviado pela mãe e deixava que até os últimos tostões lhe fugissem das mãos antes mesmo de acabar o mês, sendo levados pela bebida e pelas noitadas.
Entre visitas a exposições de Cézanne e Matisse e noites embaladas em álcool e drogas, Amadeo pintava. Sempre rostos. Homens, crianças, de preferência mulheres. Mas indiscutivelmente uma figura humana. Melhor se fosse uma única figura humana, expondo assim uma marca inconfundível do artista.  
No outono de 1909, o pintor voltou para Livorno, com a ideia fixa de se dedicar à escultura. Durante vários dias, trancou-se num ateliê, cercado apenas por pedras que ganhavam forma em suas mãos.
Após uma noite inteira de trabalho, com os cabelos desgrenhados e os olhos exaustos, reuniu alguns amigos para lhes exibir as peças prontas. Após alguns minutos de um silêncio tumular, alguém, balançando a cabeça num gesto de reprovação, ousou lançar a primeira de várias frases arrasadoras:
- Acho que falta alguma coisa.
- É verdade, quem sabe mais expressão...
- Talvez seja preciso mais prática, Modi.
As palavras, mais cortantes que os instrumentos que usou para talhar as pedras, deixaram Amadeo louco de raiva. Naquele mesmo dia, jogou as peças em um velho carrinho de mão e caminhou em direção a um dos muitos canais da cidade. Sem pensar, despejou as pedras e toda a sua raiva para dentro do rio.
Anos depois, mergulhadores lançar-se-iam nas águas daqueles canais, em busca do que estava fadado a se transformar em um verdadeiro tesouro perdido. As esculturas de Modigliani jamais foram encontradas.
- Volto a Paris, sentenciou o pintor. E assim o fez.
Mais uma vez na cidade das luzes, descobriu a arte africana, o que o inspirou a pincelar em suas telas traços mais geométricos, alongados e retilíneos. Outra marca que o tornaria, para sempre, imediatamente reconhecível.
Mas veio a guerra. E com ela, a miséria, a fome e a solidão. O dinheiro já não chegava tão regularmente da Itália e Paris estava deserta. Muitos conhecidos haviam sido mobilizados para enfrentar os inimigos, mas dizem que Amadeo foi considerado inapto pelo Exército. Enfrentou anos difíceis de sua vida.     
Curiosamente, foi nesta época penosa, que conheceu Léopold Zborowski, dono de uma pequena galeria, que se tornou não apenas empresário de Amadeo, como seu grande amigo e confidente.
Durante meses, Zborowski batia à porta de conhecidos marchands, na tentativa de vender a arte de Modigliani e, por que não?, despertar em um deles um interesse maior pelo artista.
Quando o sol já ia se deitar, voltava cansado para a água furtada da Rue Caulaincourt, olhava Amadeo e apenas balbuciava:
- Nada... por enquanto!
Modi, então, lançava um olhar de desapontamento. Mas o amigo não se deixava desestimular e, no dia seguinte, retomava à labuta. Tamanha dedicação só poderia render êxitos. Alguns colecionadores demonstraram interesse pelas figuras humanas de Modigliani, que de dentro das telas, encaravam seus espectadores com ar melancólico, algumas vezes terno, outras vezes sensual.
E, finalmente, quando a vida parecia não reservar mais surpresa alguma ao pintor, o destino colocou em seu caminho uma jovem estudante de arte de sobrancelhas grossas e espessos cabelos negros que escorriam até o meio das costas.
- Quem é esta linda mulher?, perguntou Amadeo a sua amiga, a escultora Chana Orloff.
- Querido, esta é Jeanne. Ela tem apenas 19 anos e vem de uma família burguesa tradicional e cristã. Você quer mesmo que eu a apresente?, perguntou Chana estupefata, reebendo uma resposta imediata:
- O que mais eu poderia querer nesta vida?
A flecha já havia sido lançada. Nos dois corações, pois se Amadeo estava encantado com a jovem burguesinha, ela, sentindo o coração saltar do peito, tornou-se imediatamente refém daquela paixão.
Sua família, evidentemente, escandalizou-se com aquela união, no mínimo, inesperada. Mas Jeanne, não se sabe dizer se apaixonadamente determinada ou inocentemente inconsequente, mergulhou de corpo e alma na vida de Amadeo, e com isso, no seu estilo de vida.
Conheceu o lado mais inebriante do artista em noites em que os dois ficavam separados apenas por uma tela para que ele, admirando-a de longe, pudesse eternizá-la e, em seguida, ainda com as mãos sujas de tinta, percorria seu corpo, mesmo já sabendo, de antemão, os segredos que encontraria em cada uma de suas curvas. Foi numa destas noites que a filha do casal foi concebida.
Mas Jeanne conheceu também o lado mais devastador de Amadeo. Quadros que não eram vendidos acumulavam-se às contas vencidas. O odor do álcool exalava do corpo já deteriorado de Modi que era consumido pela tuberculose. O cheiro da morte ficava impregnado por toda a casa.
Os dois encontraram forças e recursos para se estabelecer em Nice, na riviera francesa, mas Amadeo foi atraído de volta a Paris. Jeanne veio logo em seguida, com a filha a tiracolo e mais um bebê na barriga.
- Estamos sem sorte, disse Amadeo ao saber da gravidez. Completamente miserável e sem conseguir vender ou expor seus quadros, abandonava a família num velho apartamento alugado para passar as noites consumindo álcool e drogas e, desta forma, consumindo a própria vida.
Numa destas noites, sob o rigoroso inverno parisiense, Amadeo, bêbado, irritadiço e congelando de frio, perdeu de vez as forças. Levado para o hospital, morreu poucas horas depois.
A notícia não tardou a chegar aos ouvidos de Jeanne. Inconsolável, foi levada para a casa dos pais. Ela esperou pacientemente até que todos na casa adormecessem. Com lágrimas escorrendo dos olhos, acariciou a barriga de quase nove meses e caminhou em direção à janela. Sequer teve tempo para calcular a altura dos cinco andares que a separavam do chão frio e coberto de neve que a esperava lá embaixo. Simplesmente, lançou-se para a escuridão.  
Amadeo e Jeanne deixaram para trás uma criança órfã para ser criada pela tia, uma paixão arrasadora para ser lembrada pelos amigos e inúmeras pinturas para servir como prova incontestável desta história.