sábado, 28 de abril de 2012

A Fazenda do Buquira


- Purezinha, meu amor, vamos para a Serra da Mantiqueira, viver na Fazenda do Buquira, herança que o vovô, o Visconde de Tremembé - Deus o tenha - nos deixou.
                Quando José Bento disse isso, Purezinha já sabia que não teria jeito de fazer seu marido mudar de ideia.        
                Os dois se conheceram na cidade de Areias, quando José Bento, um homem esbelto, elegante, de cabelos escuros e lisos e um bigode bem tratado, trabalhava como  promotor.
                Os dois se apaixonaram e se casaram e Purezinha vivia feliz da vida como esposa de um importante advogado, quando a notícia da mudança mudou a vida do casal.
                Mesmo achando aquela ideia de virar fazendeiro uma grande maluquice, Purezinha fez as malas e embarcou na aventura ao lado de José Bento.
                Ele conseguiu convencê-la falando palavras bonitas no seu ouvido, que a deixavam encantada:
                - Loucura? Sonho?, disse ele. Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas já tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.
                E assim, os dois partiram junto com os filhos. No caminho, iam imaginando aquela fazenda linda, com árvores de todos os tipos e um belo casarão bem cuidado. Purezinha sonhava com as crianças correndo pelas terras da família e todos vivendo felizes para sempre.   
                Mas, quando chegaram na Fazenda do Buquira, encontraram uma enorme plantação de café arruinada. E nem adiantava plantar mais nada ali porque o solo estava tão destruído que nada cresceria.
                José Bento, teimoso que só ele, tentou fazer milagres. Passou os dias inventando projetos mirabolantes para que crescesse ali uma linda plantação, mas chegava do trabalho tão exausto que só pensava em dormir. 
                Quando acordava, durante o café da manhã, contava a Purezinha que tinha sonhado com uma fazenda linda. Uma fazenda, não, um sítio, dizia ele. No sonho, este sítio pertencia a uma senhora que tinha muitos netos e eles viviam grandes histórias.
                - Conta mais, conta mais, pedia Purezinha, que achava a fazenda real tão sem graça que ficava encantada com os sonhos do marido.
                - Ah, dizia José Bento, neste sítio tem uma cozinheira de mão cheia que faz as melhores comidas do mundo. E tem um homem da roça que ensina as crianças a caçar sacis.
                - Sacis?, perguntava Purezinha.
                - Isso mesmo, meu amor, Sacis. E não pense que é apenas coisa da minha cabeça porque eles existem de verdade, sabia?
                Purezinha ria com as graças do marido, mas adorava ouvir suas histórias e pedia que ele continuasse contando seus sonhos.
                - Bem, meu amor, existe neste sítio uma boneca de pano que fala, aliás, é a mais tagarela de todas, é muito divertida. Tem um outro boneco feito de sabugo de milho e tem ainda um porquinho que só pensa em comida e um burro que de burro não tem nada, é na verdade muito inteligente.
                Depois do café, José Bento voltava para o trabalho. E foi assim, dia após dia, ano após ano, até que ele percebeu que aquelas terras estavam mesmo arruinadas; bastante cansado daquela vida no campo, fez um novo anúncio:
                - Purezinha, meu amor, vamos para a capital. Viveremos em São Paulo e vou trabalhar como escritor e jornalista que é minha paixão. Achava que isto aqui tinha jeito, mas não tem jeito não. A solução é só uma: partir.
                E os dois partiram. Com o dinheiro da venda da fazenda. José Bento comprou uma revista. Em seguida, começou a publicar livros.
                Certo dia, lembrou dos sonhos que tinha quando vivia na fazenda e escreveu a história de uma menina de nariz arrebitado que vivia num sítio chamado Pica-Pau Amarelo. Continuou escrevendo mais e mais histórias sobre esta menina, chamada Narizinho, seu irmão, Pedrinho, sua avó, Dona Benta, a cozinheira Anastácia, a boneca de pano tagarela, que recebeu o nome de Emília, e por aí vai.
                José Bento escreveu tanto que acabou virando o maior escritor de contos infantis do Brasil.
                Um dia, Purezinha perguntou ao marido quando, afinal, ele tinha decidido colocar no papel aquelas histórias que ela tanto gostava. E ele disse para ela:
                - Meu amor, eu acreditava que poderia fazer da fazenda do vovô uma grande fazenda e não deu certo. Mas nunca deixei de acreditar que aquele sítio dos meus sonhos poderia virar uma realidade. Mesmo que não fosse uma realidade de terra, poderia ser uma realidade de livro, o que não deixa de ser incrivelmente belo. Foi então que tive a ideia. Tudo tem origem nos sonhos. Primeiro sonhamos, depois fazemos. Foi o que eu fiz.

José Bento Monteiro Lobato viveu com sua esposa, Maria Pureza da Natividade, conhecida como Purezinha, na Fazenda do Buquira, herdada pelo seu avô, o Visconde de Tremembé, entre 1911 e 1917.
Os negócios na fazenda não deram certo, mas foi ali que ele teve inspiração para escrever seu famoso personagem, o Jeca Tatu, baseado no trabalhador rural paulista.
As histórias do Sítio do Pica-pau Amarelo vieram depois, mas certamente, Monteiro Lobato tinha na memória as lembranças da fazenda quando deu vida ao sítio e seus personagens.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A mulher ou o tigre?

Este não é o tipo de história que eu costumo postar aqui. É grande (se comparada com as outras), mas é muito bacana. Vale a leitura.
De Frank R. Stockton; contribuição da minha amiga Simone.


Muito tempo atrás, existia um rei semibárbaro. Suas ideias, apesar de continuamente aperfeiçoadas e estimuladas pela rápida expansão dos seus vizinhos latinos, permaneciam primitivas, disparatadas e irrefreáveis, como se viessem de sua metade ainda bárbara. Era um homem de imaginação exuberante e, sobretudo, dotado de tão irresistível autoridade que, de acordo com sua vontade, suas fantasias se transformavam em fatos. Como era seu próprio conselheiro, bastava concordar consigo mesmo para que seus desejos se tornassem realidade.
Enquanto os membros dos seus sistemas doméstico e político se moviam suavemente na direção que o rei apontava, sua natureza era afável e cordial; porém, se surgisse um pequeno obstáculo e um dos seus satélites saísse da devida órbita, ele se mostrava ainda mais afável e cordial, pois nada o agradava mais do que desentortar o torto e alisar à força qualquer irregularidade.
Dentre as ideias importadas que tornavam seu barbarismo mais sofisticado estava a arena pública. Nela, através das exibições de coragem e força de homens e de feras, as mentes dos súditos eram refinadas e educadas.
Contudo, mesmo lá, os caprichos exuberantes e bárbaros se faziam presentes. A arena do rei era construída não para dar ao povo a chance de ouvir a rapsódia dos moribundos gladiadores, nem para dar a ele a oportunidade de testemunhar a inevitável conclusão de um conflito entre opiniões religiosas e mandíbulas famintas, mas sim para propósitos mais adaptados para ampliar e desenvolver as energias mentais das pessoas. Esse vasto anfiteatro, com galerias circundantes, subterrâneos misteriosos e passagens ocultas, era um agente de poética a mulher ou o tigre? justiça, onde o crime era punido e a virtude recompensada pela decisão do imparcial e incorruptível acaso.
Quando um súdito era acusado de um crime importante o suficiente para interessar ao rei, anunciava-se publicamente que num dia determinado a sorte da pessoa acusada seria decidida na arena real. A estrutura bem merecia esse nome, pois, ainda que sua forma e arquitetura fossem emprestadas de outrem, seu propósito emanava apenas do cérebro desse homem que, por conter a realeza em cada átomo de seu corpo, não defendia outra tradição que não a plena satisfação de seus caprichos, e que impunha a força de seu idealismo bárbaro a toda e qualquer forma de ação e do pensamento humanos.
Após a multidão se acomodar nas galerias e o monarca, rodeado pela sua corte, ocupar o camarote real, ele dava um sinal; em seguida, uma porta se abria e o súdito acusado era introduzido no anfiteatro. Do outro lado da arena, bem à sua frente, havia duas portas, absolutamente iguais em forma, dispostas lado a lado. Era dever e privilégio da pessoa sob julgamento encaminhar-se para as portas e abrir uma delas. O réu podia abrir a porta que desejasse: não estava sujeito a qualquer influência ou orientação, apenas ao supracitado imparcial e incorruptível acaso. Abrindo uma delas, surgiria um tigre faminto, o mais feroz e cruel que tivesse sido encontrado, que imediatamente se lançaria sobre ele e o faria em pedaços, como punição por seu crime. Nesse momento, em que o caso do criminoso fora assim decidido, os sinos soariam lugubremente, as carpideiras contratadas gritariam seus lamentos e a vasta audiência, com cabeça curvada e coração entristecido, tomaria o caminho de casa, desolada porque alguém tão jovem e belo, ou velho e respeitável, merecera um destino tão horrendo.
Porém, se a pessoa acusada abrisse a outra porta, dela sairia uma mulher, a mais adequada em idade e condição social que Sua Majestade pudesse selecionar entre suas belas súditas. O acusado e essa mulher casar-se- iam imediatamente, como recompensa pela sua inocência. Não importava que o acusado já tivesse esposa e filhos ou que estivesse comprometido afetivamente com alguém de sua escolha: o rei não permitia que qualquer compromisso anterior interferisse no seu grande plano de retribuição e recompensa. A cerimônia, assim como no caso da outra escolha, acontecia imediatamente na própria arena. Outra porta se abria sob o balcão do rei e surgia um padre, acompanhado por um balé de virgens soprando clarins dourados e por um coral entoando poemas epitalâmicos. O religioso e seu cortejo se dirigiam ao centro da arena, onde aguardavam o recém-julgado e a noiva prometida; o matrimônio era prontamente realizado e devidamente festejado. Em seguida, os sinos de bronze repicavam alegremente, as pessoas da audiência saudavam o casal com fervor incomparável, e o réu inocentado, precedido por crianças que espalhavam flores no caminho, levava para sua casa a jovem noiva.
Esse era o método semibárbaro escolhido pelo rei para exercer a justiça. Sua perfeita imparcialidade é óbvia. O criminoso não sabia que porta escondia a mulher: ele abria a que escolhesse, sem ter a mínima ideia se, no instante seguinte, estaria despedaçado ou casado. Em algumas ocasiões o tigre saía por uma porta, outras vezes pela outra. As decisões desse tribunal eram não apenas justas, mas também determinadas com clareza: a pessoa acusada seria instantaneamente punida se fosse considerada culpada; e se fosse inocente, seria recompensada no mesmo instante, quisesse ou não. Não havia como fugir aos julgamentos da arena do rei.
Essa instituição era muito popular. Quando os súditos se reuniam nos dias de julgamento, não podiam prever se testemunhariam uma sangrenta carnificina ou um alegre matrimônio. Esse elemento de incerteza emprestava um encanto especial à ocasião que, talvez, não fosse possível de outra maneira. Assim, as massas eram entretidas e satisfeitas, e a parte intelectualizada da comunidade não tinha como duvidar da imparcialidade dessa instituição: não estava nas mãos do próprio acusado a responsabilidade da escolha?
Esse rei semibárbaro tinha uma filha, tão florescente quanto seus mais ostentosos caprichos e com uma alma tão ardorosa e dominadora quanto a do monarca. Como geralmente acontece nesses casos, ela era a menina dos olhos dele, numa adoração que sobrepujava a de qualquer outro mortal. Entre seus cortesãos estava um jovem rapaz, com a nobreza de caráter e a deficiência de sangue azul tão comuns aos convencionais heróis de romance que se apaixonam por altivas princesas. A princesa real estava muito satisfeita com seu apaixonado, pois ele era o mais belo e corajoso jovem de todo o reino; e ela o amava com um ardor tão intenso que apenas o barbarismo de seu sangue poderia explicar.
Esse romance desenvolveu-se alegremente durante muitos meses, até o dia em que o rei descobriu sua existência. Ele não hesitou nem vacilou no cumprimento de seus deveres. O jovem foi imediatamente jogado na prisão, e foi marcado o dia para seu julgamento na arena real. Essa, sem dúvida, era uma ocasião especialmente importante, e o monarca, assim como seu povo, estava enormemente interessado nos preparativos e desenvolvimento desse julgamento. Nunca antes havia acontecido um caso semelhante; nunca antes havia um súdito ousado amar a filha de um rei. Em tempos posteriores, tais coisas se tornaram até bastante comuns; porém, naquele momento, a situação era nova e surpreendente.
As feras mais selvagens e implacavelmente cruéis do reino foram avaliadas para que dentre elas fosse selecionada aquela que estaria na arena. Todas as jovens donzelas do reino foram cuidadosamente analisadas por um grupo de competentes juízes, para que o jovem réu tivesse uma noiva adequada, no caso de ser esse o destino que o acaso lhe reservava. É lógico que todo mundo conhecia o motivo pelo qual o acusado seria julgado. Ele havia amado a princesa, e nem ele, ela ou qualquer pessoa pensaria em negar o fato; porém o rei não permitiria que qualquer fato desse tipo interferisse com os trabalhos do tribunal, que lhe davam tamanho prazer e satisfação. Independente do destino do romance, o jovem seria liquidado; e o rei demonstrava um prazer estético ao testemunhar o curso dos eventos, que determinaria se o jovem tinha ou não errado ao ousar amar a princesa.
O dia marcado chegou. Os súditos chegavam de todos os lugares do reino, amontoando-se nas galerias da arena; impossibilitada de entrar, uma multidão se apinhava do lado de fora, espremendo-se contra as grades e portões. O rei e sua corte ocuparam seus lugares, exatamente na parede oposta às duas portas - as duas fatídicas portas, tão terríveis em sua similaridade.
Tudo estava pronto. O sinal foi dado. Uma porta se abriu sob o camarote real, e o namorado da princesa entrou na arena. Alto, belo, loiro, sua entrada foi saudada com um audível murmúrio de admiração e ansiedade. Metade da audiência nem ao menos sabia que um rapaz de tão bela aparência havia vivido entre eles. Não era de se espantar que a princesa tivesse se apaixonado por ele! Que coisa horrível era, para ele, estar ali!
De acordo com o costume, o réu, ao entrar na arena, voltou-se para reverenciar o rei; entretanto, seu olhar não se prendeu à augusta figura do monarca. Seus olhos foram arrebatados pela princesa, sentada à direita do pai. Não fosse pela porção primitiva de sua natureza, é provável que a princesa nem estivesse ali; porém, sua alma intensa e fervorosa não permitiria que se ausentasse numa ocasião na qual estava tão terrivelmente interessada. Desde o momento em que havia sido decretado que seu amado teria a sorte decidida na arena, a moça não conseguira pensar em outra coisa, noite e dia, senão nesse grande evento e nos fatos a ele relacionados. Dotada de mais poder, influência e força de caráter do que qualquer outra pessoa, ela conseguiu o que ninguém conseguira antes - ela descobriu o segredo das portas. Ela sabia em qual dos cubículos atrás das portas havia sido colocado o tigre e em qual permanecia a futura noiva. Através das pesadas portas, recobertas internamente por grossas cortinas, era impossível ouvir qualquer barulho; nenhuma sugestão viria de dentro para a pessoa que se aproximasse para erguer o trinco de uma delas; entretanto, o dinheiro e o poder do desejo de uma mulher haviam revelado o segredo.
Não apenas a donzela real sabia em que recinto estaria a jovem prometida, pronta para surgir, toda corada e radiante, se sua porta fosse aberta, como também sabia quem era essa jovem. Uma das mais belas e adoráveis donzelas da corte fora a escolhida para ser a recompensa do rapaz acusado, caso fosse considerado inocente do crime de desejar alguém tão superior a ele. A princesa a odiava. Muitas vezes tinha visto, ou imaginava ter visto, essa bela criatura lançando olhares de admiração para seu amado, e acreditava que os olhares não somente eram percebidos como também retribuídos. Várias vezes os vira conversando, ainda que por apenas um instante; entretanto, muito pode ser dito em questão de segundos. Se o assunto era desimportante ou não, como poderia ela saber? A garota era adorável, mas havia ousado levantar os olhos para o amado da princesa; e, com toda a intensidade do sangue selvagem, herdado de uma longa linhagem de ancestrais bárbaros, ela odiava a mulher que enrubescia e tremia atrás daquela porta silenciosa.
Seu amado voltou-se na arena e olhou-a. Quando a viu, mais pálida e desolada que qualquer outro ser em meio ao vasto oceano de faces ansiosas que a rodeavam, ele percebeu, pelo poder de rápida percepção inerente a aqueles seres cujas almas são uma só, que ela sabia qual porta escondia o tigre e qual ocultava a mulher. Ele tinha certeza que ela descobriria. Ele compreendia sua natureza; sua alma acreditava que a princesa jamais descansaria até descobrir o segredo das portas, algo desconhecido por todos, até mesmo pelo próprio rei. A única esperança para o jovem estava baseada na crença de que a princesa conseguiria descobrir o mistério; e, no momento em que seus olhares se cruzaram, ele soube que ela havia atingido seu intento, exatamente como a alma do rapaz acreditava que ela o faria.
Nesse rápido e ansioso olhar, a pergunta "Qual?" foi feita. A indagação era tão clara para a princesa como se o jovem a tivesse gritado do meio da arena. O momento era preciso, não havia um instante a ser desperdiçado. A pergunta foi feita num átimo de segundo; a resposta teria que ser produzida em igual velocidade. Seu braço direito estava apoiado no parapeito almofadado à sua frente. Ela ergueu a mão, e fez um leve e rápido movimento para a direita. Ninguém, com exceção de seu amado, percebeu o discreto gesto. Todos os olhos estavam fixos no homem no centro da arena. Ele voltou-se, e com passos firmes e ligeiros atravessou o espaço vazio. No estádio repleto, cada coração perdeu o compasso, cada respiração foi suspensa, cada olhar imobilizou-se, acompanhando os movimentos do rapaz. Sem a menor hesitação, ele dirigiu-se à porta da direta, e abriu-a.
* * * * *
Agora, o desfecho da história é o seguinte: Quem a porta ocultava: a mulher ou o tigre?
Quanto mais refletimos sobre a questão, mais difícil nos parece a resposta. Ela envolve um estudo do coração humano, o que nos leva pelos tortuosos labirintos da paixão, dos quais a saída é sempre muito difícil. Analise de maneira imparcial, caro leitor, não como se a decisão dependesse de você, mas sim de uma princesa semibárbara de sangue quente, de sentimentos primitivos, com a alma dividida entre as chamas do desespero e do ciúme. Ela o perdera; porém, quem deveria ganhá-lo?
Quantas vezes, nas horas de insônia ou nos pesadelos, ela sofrera as agonias do horror e cobrira seus olhos em pânico ao pensar que seu amado pudesse abrir a outra porta e encontrar a sua espera as garras mortais do cruel tigre!
Entretanto, muitas vezes mais, ela o imaginara abrindo a outra porta! Quantas vezes, nos dolorosos devaneios, ela rangera os dentes e arrancara os cabelos ao imaginar os arroubos de felicidade do amado quando abrisse a porta que ocultava a linda jovem! Como sua alma se consumia de angústia ao imaginá-lo correndo ao encontro de tal mulher, com sua face corada de alegria e os olhos brilhantes de triunfo; quando o via conduzir a jovem, seu prêmio, com o coração transbordante de júbilo pela vida recuperada; quando ouvia os gritos de contentamento da multidão e o alegre ressoar dos sinos; quando imaginava ver o padre e seu festivo cortejo se aproximando do feliz casal para uni-los em sagrado matrimônio; e quando os via trilhando juntos o caminho recoberto de flores, acompanhados dos brados de felicidades da entusiasmada audiência - oh! e em meio a tudo isso, o que lhe restaria, senão um inútil e perdido gemido de desespero!
Não seria melhor que ele morresse de uma vez, e fosse esperar por ela nas abençoadas regiões de um paraíso semibárbaro?
Mas, apesar de tudo isso, a lembrança daquele tigre medonho, daquele rosnar feroz, daquele sangue!
Sua decisão fora manifestada num átimo de segundo, porém havia sido tomada após dias e noites de angustiada deliberação. Ela sabia o que lhe seria perguntado, ela havia decidido o que deveria responder e, sem a menor hesitação, movera sua mão para o lado direito.
As diferentes hipóteses que podem ser levantadas tendo em vista a decisão da princesa têm que ser consideradas cuidadosamente, sem leviandade nem precipitação. Não me considero a pessoa mais capacitada para responder. Portanto, deixo para você, leitor, esta pergunta: Quem saiu pela porta aberta: a mulher ou o tigre?

quinta-feira, 1 de março de 2012

O esconderijo das medalhas de ouro

Em um reino não muito distante – para vocês terem ideia, de avião, dá para chegar lá em algumas horas – existia um cientista muito famoso chamado Niels. Certo dia, ele recebeu uma encomenda especial. Eram duas medalhas de ouro de 23 quilates cada uma.
Elas pertenciam a dois cientistas, amigos de Niels, que viviam em um país vizinho. Lá, um imperador – um tanto desequilibrado - havia decidido que iria controlar o mundo. E qualquer um que dissesse que esta não era uma boa ideia, ele mandava matar. Pois bem, estes dois cientistas ousaram dizer ao imperador que a ideia não era lá grandes coisas. Resultado: foram obrigados a fugir e para que suas medalhas não fossem parar nas mãos do imperador, decidiram enviá-las para o amigo Niels.
Niels colocou as duas medalhas na estante de seu laboratório, ao lado de vários outros prêmios conquistados desde que ele era apenas um estudante. Tinha até o troféu da feira de ciências da escola.
Numa tarde, enquanto Niels trabalhava tranquilamente, Georgy, um de seus assistentes, abriu a porta com toda a força e, esbaforido, gritou:
- Soldados... soldados do imperador... estão chegando... num navio enorme... e estão armados... vão invadir e tomar conta de toda a cidade!
Niels levou um grande susto. Não acreditava que o tal imperador fosse realmente capaz de dominar o mundo, mas pelo visto, iria dominar a cidade onde vivia. Rapidamente, olhou para a estante e pensou:
- Tenho que esconder as medalhas dos meus amigos. São muito valiosas e os soldados, certamente, vão querer ficar com elas.
Começou a caminhar de um lado para o outro do laboratório, pensando como faria para escondê-las. Georgy, vendo a aflição de Niels, sugeriu:
- Cave um buraco no jardim e guarde-as lá. Ninguém nunca vai descobrir.
Mas Niels, na mesma hora, respondeu:
- Nas histórias de aventura o tesouro é sempre enterrado. Muito óbvio. Estes soldados vão escavar a cidade inteira atrás de coisas valiosas.
- Tive uma ideia, gritou Georgy. As medalhas são de ouro. Vamos então dissolvê-las.
- Ora, ora Georgy. Você sabe muito  bem que ouro é um metal nobre. Não se mistura, tampouco se dissolve facilmente.
- Sim, mas podemos usar a água mágica da rainha!
- Oh, como não pensei nisso antes, disse Niels. Temos a água da rainha. É tão poderosa que é capaz de dissolver o ouro. Se jogarmos as medalhas nesta água, elas vão parecer apenas um líquido colorido. Podemos, então, deixar na estante, junto com vários frascos cheios de fórmulas e misturas; os soldados nunca vão suspeitar que ali estão as medalhas. Rápido, vamos trabalhar. Temos pouco tempo.
A água da rainha era uma espécie de fórmula mágica e pouquíssimas pessoas tinham acesso a ela. Mas havia um frasco com a água no laboratório. Então, eles jogaram as medalhas lá dentro. Em instantes, havia ali apenas um líquido de cor laranja que foi colocado na estante.
Pouco tempo depois, os soldados do imperador invadiram o laboratório.
- Soubemos que você guarda aqui objetos de grande valor, disse um dos soldados. Não adianta tentar escondê-los. Nós vamos achá-los.
E então, começaram a revistar todo o laboratório. Abriram gavetas e armários, jogaram papeis para o alto, passaram os olhos pela estante e, como previsto, correram para o jardim e escavaram todo o terreno. Evidentemente, não encontraram nada!
Mas durante muitos anos, o reino foi ocupado pelos soldados e os cientistas não puderam entrar no laboratório. O imperador até tentou dominar o mundo, mas não conseguiu e assim, as coisas voltaram a ser como antes.
Niels e Georgy puderam finalmente retornar ao laboratório e, para sua surpresa, encontraram o frasco com o líquido laranja intacto em cima da estante.
Usando seus conhecimentos, conseguiram reverter o processo devolvendo o ouro ao seu estado sólido e ao seu formato original.
Foi então que os dois amigos de Niels, que tinham fugido no começo desta história, voltaram para casa e encontraram, esperando por eles, uma encomenda especial. As duas medalhas de ouro, de 23 quilates cada uma.

Esta história, recheada com um pouco de fantasia, é baseada em um acontecimento real. Para esconder dos nazistas as duas medalhas do Prêmio Nobel dos físicos alemães James Frank e Max van Laue, o físico dinamarquês Niels Bohr as colocou em água régia, único composto químico capaz de dissolver o ouro. A ideia foi proposta pelo químico húngaro Georgy de Hevesy. A água régia é um composto concentrado de ácido clorídrico e ácido cítrico, na proporção de 3 para 1.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Modigliani

Flaminio passava pelo porto de Livorno, cabisbaixo, preso aos próprios pensamentos. Às portas da ruína, tentava encontrar uma maneira de escapar das dívidas que havia acumulado nos últimos tempos. Estava tão fechado em seu próprio mundo que somente quando sacudiram a manga de seu terno surrado, percebeu que um jovem mensageiro vinha lhe trazer notícias sobre sua amada esposa, Eugenie.
- Signore Modligiani, signore Modligiani, andiamo, andiamo veloce. Sua esposa está em trabalho de parto, signore.
Flaminio correu o mais rápido que pôde e chegou em casa juntamente com os credores. Eles estavam ali para levar os parcos bens da família de modo a quitar seus débitos. Mas a lei era clara: credor nenhum poderia tomar a cama – e o que estivesse em cima dela – de uma mulher grávida ou carregando um recém-nascido.
Aproveitando-se desta brecha na lei, o casal Modigliani conseguiu salvar os pertences mais valiosos, colocando-os sobre a cama da pobre mulher que acabara de dar à luz seu quarto filho, Amadeo. 
O menino de saúde frágil – ainda jovem contraiu pleurisia, febre tifoide e tuberculose – era o xodó da mãe e ela não poupou esforços para dar a ele a melhor educação possível. Mas na escola, Amadeo só queria saber de desenhar e fugir das aulas, fugir das aulas e desenhar.
“Será que meu filho é um artista?”, pensava Eugenie. O que, no início, era apenas uma suspeita, foi tomando forma na vida de mãe e filho. Ele, cada vez mais inclinado para as artes e ela, sem medir esforços, lutando para dar ao jovem a base necessária para que se tornasse um grande pintor, o que incluiu confiar-lhe às mãos de um representante dos Macchiaioli, um grupo de artistas florentinos que defendiam a pintura realista e, anos mais tarde, matricular Amadeo na prestigiada Escola de Belas Artes de Florença.
Dali, não demorou muito para que o rapaz se mudasse para Paris. Ah, Paris! Montmartre. O bairro da boemia e dos grandes artistas.
Logo que chegou, Amadeo instalou-se em uma água-furtada na Rue Caulaincourt. O número 21 daquela rua já havia abrigado o ateliê de Toulouse-Lautrec e, algumas casas mais adiante, mais precisamente no número 73, Auguste Renoir se instalaria e ficaria até seus últimos dias de vida.
Uma vez acomodado, Amadeo, com uma exuberante cabeleira negra e barba cortada rente, desfilava pelas ruas vestindo um velho paletó de veludo cotelê. Não foram poucas as vezes em que esbarrou em outros artistas, franceses ou estrangeiros como ele, todos em busca da fama que parecia brotar daquele chão para facilmente ser agarrada. Max Jacob, Jean Cocteau, Juan Gris, Kandinsky, o escultor Constantino Brancusi e Pablo Picasso, este, já alguns degraus acima em direção ao reconhecimento.
Naquela época, Amadeo, ou Modi, como era conhecido, esperava ansiosamente pelo dinheiro enviado pela mãe e deixava que até os últimos tostões lhe fugissem das mãos antes mesmo de acabar o mês, sendo levados pela bebida e pelas noitadas.
Entre visitas a exposições de Cézanne e Matisse e noites embaladas em álcool e drogas, Amadeo pintava. Sempre rostos. Homens, crianças, de preferência mulheres. Mas indiscutivelmente uma figura humana. Melhor se fosse uma única figura humana, expondo assim uma marca inconfundível do artista.  
No outono de 1909, o pintor voltou para Livorno, com a ideia fixa de se dedicar à escultura. Durante vários dias, trancou-se num ateliê, cercado apenas por pedras que ganhavam forma em suas mãos.
Após uma noite inteira de trabalho, com os cabelos desgrenhados e os olhos exaustos, reuniu alguns amigos para lhes exibir as peças prontas. Após alguns minutos de um silêncio tumular, alguém, balançando a cabeça num gesto de reprovação, ousou lançar a primeira de várias frases arrasadoras:
- Acho que falta alguma coisa.
- É verdade, quem sabe mais expressão...
- Talvez seja preciso mais prática, Modi.
As palavras, mais cortantes que os instrumentos que usou para talhar as pedras, deixaram Amadeo louco de raiva. Naquele mesmo dia, jogou as peças em um velho carrinho de mão e caminhou em direção a um dos muitos canais da cidade. Sem pensar, despejou as pedras e toda a sua raiva para dentro do rio.
Anos depois, mergulhadores lançar-se-iam nas águas daqueles canais, em busca do que estava fadado a se transformar em um verdadeiro tesouro perdido. As esculturas de Modigliani jamais foram encontradas.
- Volto a Paris, sentenciou o pintor. E assim o fez.
Mais uma vez na cidade das luzes, descobriu a arte africana, o que o inspirou a pincelar em suas telas traços mais geométricos, alongados e retilíneos. Outra marca que o tornaria, para sempre, imediatamente reconhecível.
Mas veio a guerra. E com ela, a miséria, a fome e a solidão. O dinheiro já não chegava tão regularmente da Itália e Paris estava deserta. Muitos conhecidos haviam sido mobilizados para enfrentar os inimigos, mas dizem que Amadeo foi considerado inapto pelo Exército. Enfrentou anos difíceis de sua vida.     
Curiosamente, foi nesta época penosa, que conheceu Léopold Zborowski, dono de uma pequena galeria, que se tornou não apenas empresário de Amadeo, como seu grande amigo e confidente.
Durante meses, Zborowski batia à porta de conhecidos marchands, na tentativa de vender a arte de Modigliani e, por que não?, despertar em um deles um interesse maior pelo artista.
Quando o sol já ia se deitar, voltava cansado para a água furtada da Rue Caulaincourt, olhava Amadeo e apenas balbuciava:
- Nada... por enquanto!
Modi, então, lançava um olhar de desapontamento. Mas o amigo não se deixava desestimular e, no dia seguinte, retomava à labuta. Tamanha dedicação só poderia render êxitos. Alguns colecionadores demonstraram interesse pelas figuras humanas de Modigliani, que de dentro das telas, encaravam seus espectadores com ar melancólico, algumas vezes terno, outras vezes sensual.
E, finalmente, quando a vida parecia não reservar mais surpresa alguma ao pintor, o destino colocou em seu caminho uma jovem estudante de arte de sobrancelhas grossas e espessos cabelos negros que escorriam até o meio das costas.
- Quem é esta linda mulher?, perguntou Amadeo a sua amiga, a escultora Chana Orloff.
- Querido, esta é Jeanne. Ela tem apenas 19 anos e vem de uma família burguesa tradicional e cristã. Você quer mesmo que eu a apresente?, perguntou Chana estupefata, reebendo uma resposta imediata:
- O que mais eu poderia querer nesta vida?
A flecha já havia sido lançada. Nos dois corações, pois se Amadeo estava encantado com a jovem burguesinha, ela, sentindo o coração saltar do peito, tornou-se imediatamente refém daquela paixão.
Sua família, evidentemente, escandalizou-se com aquela união, no mínimo, inesperada. Mas Jeanne, não se sabe dizer se apaixonadamente determinada ou inocentemente inconsequente, mergulhou de corpo e alma na vida de Amadeo, e com isso, no seu estilo de vida.
Conheceu o lado mais inebriante do artista em noites em que os dois ficavam separados apenas por uma tela para que ele, admirando-a de longe, pudesse eternizá-la e, em seguida, ainda com as mãos sujas de tinta, percorria seu corpo, mesmo já sabendo, de antemão, os segredos que encontraria em cada uma de suas curvas. Foi numa destas noites que a filha do casal foi concebida.
Mas Jeanne conheceu também o lado mais devastador de Amadeo. Quadros que não eram vendidos acumulavam-se às contas vencidas. O odor do álcool exalava do corpo já deteriorado de Modi que era consumido pela tuberculose. O cheiro da morte ficava impregnado por toda a casa.
Os dois encontraram forças e recursos para se estabelecer em Nice, na riviera francesa, mas Amadeo foi atraído de volta a Paris. Jeanne veio logo em seguida, com a filha a tiracolo e mais um bebê na barriga.
- Estamos sem sorte, disse Amadeo ao saber da gravidez. Completamente miserável e sem conseguir vender ou expor seus quadros, abandonava a família num velho apartamento alugado para passar as noites consumindo álcool e drogas e, desta forma, consumindo a própria vida.
Numa destas noites, sob o rigoroso inverno parisiense, Amadeo, bêbado, irritadiço e congelando de frio, perdeu de vez as forças. Levado para o hospital, morreu poucas horas depois.
A notícia não tardou a chegar aos ouvidos de Jeanne. Inconsolável, foi levada para a casa dos pais. Ela esperou pacientemente até que todos na casa adormecessem. Com lágrimas escorrendo dos olhos, acariciou a barriga de quase nove meses e caminhou em direção à janela. Sequer teve tempo para calcular a altura dos cinco andares que a separavam do chão frio e coberto de neve que a esperava lá embaixo. Simplesmente, lançou-se para a escuridão.  
Amadeo e Jeanne deixaram para trás uma criança órfã para ser criada pela tia, uma paixão arrasadora para ser lembrada pelos amigos e inúmeras pinturas para servir como prova incontestável desta história.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O rei e o rio

Há muito tempo, quando grande parte das florestas do nosso continente ainda nem tinha sido explorada, um marechal, meio branco, meio índio, andava mata adentro estabelecendo uma linha telegráfica em lugares ermos e distantes. Foi desta forma que ele descobriu a cabeceira de um rio. Um rio de águas escuras e rápidas que não constava em mapa algum. Como ninguém sabia para onde ele ia, por onde passava e onde terminava, foi chamado pelo marechal, de Rio da Dúvida.
Um rei, muito aventureiro, que vivia longe daqui, ouviu falar do tal rio e resolveu desbravá-lo. Ele chamou o seu filho, aventureiro como ele, e reuniu um grupo de botânicos, biólogos, historiadores e até um ornitologista, um especialista no estudo das aves, e veio para cá, mas foi desencorajado na mesma hora:
               - Mas que grande absurdo, diziam todos, um rei querendo percorrer um rio que ninguém sabe para onde vai, nem por onde passa?! É muito perigoso! Não, não, não, de jeito nenhum.
Mas o rei, além de ser aventureiro, era também extremamente teimoso e bateu pé.
Convidaram, então, o marechal para embarcar nesta viagem, pois ele era o único que conhecia bem a região. Pronto! O destino tinha acabado de reunir duas pessoas extremamente decididas e completamente apaixonadas pela selva. De um lado, um rei que buscava uma nova aventura, uma espécie de safári com esporte radical e estudos científicos; do outro lado, um marechal meio branco, meio índio, ansioso para continuar mapeando a floresta.
Durante a caminhada longa e penosa até a cabeceira do rio, muitos que pretendiam fazer a travessia desistiram. Do grupo do rei, só restaram duas pessoas para acompanhá-lo: seu filho e o tal ornitologista. E eles, ao lado do marechal e de mais 15 homens valentes, começaram a aventura.
Mas parece que a floresta ficou incomodada com a presença daquelas pessoas estranhas porque preparou para elas armadilhas terríveis: tempestades tropicais, muito calor ou muito frio, cachoeiras enormes. Tinham também os pernilongos, as piranhas, os jacarés, as onças e outros animais que não acabavam mais. E nenhuma comida, nem uma frutazinha sequer a floresta estava disposta a oferecer.
Os dias iam passando, as semanas iam passando, os meses iam passando...
Cada vez mais cansados, cada vez com mais fome e cada vez menos esperançosos, os homens da excursão já estavam imaginando que não haveria saída e que nenhum deles seria capaz de voltar para casa com vida.
Em algumas noites, quando eles encostavam as canoas e se preparavam para dormir, barulhos estranhos vinham da escuridão da mata. Alguns pensavam que eram seres misteriosos da floresta, outros acreditavam que eram feras famintas prontas para atacar e devorar quem aparecesse na frente.
Mas o marechal, ah, o marechal sabia muito bem quem realmente os rondava. Eram os índios. O que o marechal não sabia é que aqueles íncios eram os Cinta-larga, uma tribo violenta e que nunca tinha estado em contato com o homem branco.
De dentro da floresta, eles acompanhavam as canoas que passavam sem nunca se mostrar, eram como sombras escondidas entre galhos de árvores, plantas e bichos.
E foi do meio das matas que os Cinta-larga viram o rei adoecer depois de um acidente grave. Ele delirava tanto que apenas repetia uma frase de um poema famoso:
           - Em Xanadu fez Kubla Kahn um domo majestoso e deleitoso por decreto, em Xanadu fez Kubla Kahn um domo majestoso e deleitoso por decreto, em Xanadu fez Kubla Kahn um domo majestoso e deleitoso por decreto.
Durante vários dias e várias noites, com o presidente delirando e beirando a morte, dois mundos totalmente estranhos um para o outro caminhavam juntos na descida do rio: por terra, osíndios e outro por água, os expedicionários.
Duzentos e trinta e sete dias depois do início da aventura, quando o rio já parecia sem fim, a viagem acabou. O rei e o marechal se tornaram grandes heróis, mas nem eles saberiam explicar como escaparam ilesos dos Cinta-larga.
Um segredo ficou guardado por gerações e gerações da tribo. Enquanto a expedição atravessava a floresta, os índios não chegaram a um consenso. Uns, assustados, queriam atirar suas flechas envenenadas nos intrusos, outros, curiosos, achavam melhor esperar para ver o que aqueles homens queriam, afinal de contas.
Tomaram, então, uma decisão baseada numa regra de ouro da tribo: sem o consentimento geral, nada seria feito.
E foi assim, só assim, que os homens da expedição sobreviveram e puderam contar suas aventuras para seus filhos, que contaram para seus filhos, que contaram para seus filhos e hoje, eu estou aqui, contando esta aventura para vocês.

O rei desta história é, na verdade, o presidente americano Theodore Roosevelt. Em 1914, ao lado do marechal Rondon, chegou às margens do rio e iniciou a aventura que ficou conhecida como Expedição Científica Rondon-Roosevelt. Após a descoberta do curso do rio, ele foi rebatizado de rio Roosevelt.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ferdinando queria falar

           Existiu, há muitos anos, um jovem que quase ficou esquecido na História. Ele se chamava Ferdinando, era um garoto muito aventureiro e cheio de sonhos. O que ele mais gostava de fazer era falar. Quando criança, reunia os amigos e falava sem parar. Tudo que ele aprendia na escola, repetia. Contava o que tinha aprendido para os pais, os avós, os tios, os amigos, até para o papagaio, o periquito e a arara. E olha, nem a arara falava tanto que nem ele.
            Mas um dia, chegou na cidade um homem alto, forte, meio careca que usava uma roupa de general e tinha uma cara de mau. Ele era mau mesmo, era um tirano. Sabem o que é um tirano? É uma pessoa que adora dar ordens e rouba de todo mundo o direito de decidir se concorda ou não com as ordens que ele dá.
            Este tirano chegou na cidade dizendo que a partir daquele dia, todos tinham que obedecer a ele. Ele chegou com um exército que assustava todo mundo.
            Claro que os moradores da cidade ficaram com muito medo. E o medo é uma coisa que nos deixa paralisados. O mesmo medo que nos faz esconder a cabeça debaixo do cobertor à noite, sabe?, também nos faz perder a voz. Foi o que todos na cidade fizeram. Correram para debaixo dos seus cobertores. Sem forças para gritar, se encolheram assustados em suas casas.     
Mas o Ferdinando, logo ele que adorava falar, não conseguiu ficar calado, não. E começou a reclamar. Junto com três amigos que também não estavam nada contentes com aquela história toda, montou um movimento contra o tirano. O Ferdinando e os seus amigos eram muito corajosos e queriam gritar para todo mundo ouvir que aquilo não estava certo, que não podia aparecer alguém assim e sem mais nem menos tomar decisões e mandar em tudo e em todos por ali.
            Estes jovens herois achavam que seria fácil expulsar aqueles invasores, mas eles eram muito jovens e muito poucos e o exército do tirano era forte e bem preparado. Em pouco tempo, o exército conseguiu prender o Ferdinando e os seus amigos. E o tirano deu para eles o maior castigo que poderia existir. Tirou suas vozes. É, a partir daquele dia, o Ferdinando e os seus amigos ficaram sem voz e nunca mais puderam falar nada contra o tirano.
            Durante muitos anos, aquele homem malvado ficou na cidade e ninguém tinha coragem de falar nada. As pessoas foram ficando cada vez mais tristes e mais caladas. De vez em quando, apareciam grupos de jovens como os de Ferdinando, bravos herois que tentavam gritar, mas eles precisavam se esconder para que o tirano não os descobrisse e não tirasse deles a voz.
            Um dia, finalmente, o tirano foi embora da cidade. Já tinha passado muito tempo e ninguém lembrava mais do Ferdinando, dos seus amigos e da coragem que eles tiveram em lutar. Mas o novo prefeito da cidade lembrou e mandou construir um monumento em homenagem a eles para que ninguém nunca mais se esquecesse da bravura e da coragem daqueles jovens. E esta história passou a ser repetida muitas e muitas vezes em forma de lenda, em forma de fábula, até em forma de conto de ninar. E desta forma, Ferdinando e seus amigos recuperaram para todo o sempre suas vozes.

Ferdinando Bidovec foi membro do TIGR, movimento de resistência antifascista esloveno, considerado um dos primeiros da Europa. Em 1930, Ferdinando e mais três amigos foram presos, condenados e executados. O jovem idealista tinha apenas 22 anos.